Alegando-se que durante a guerra os ex-combatentes (crianças-soldado, jovens e adultos) mataram ou ajudaram directamente a matar pessoas e, por isso, foram possuídos pelos svikwembu - espíritos dos mortos (Cabral, 2005/2006), ou então, experiências traumáticas podem provocar desordens mentais graves aos ex-combatentes independentemente de estarem ou não envolvidos em fenómenos de possessão (Granjo, 2007), realizavam-se rituais de purificação. Assim, os curandeiros tinham plena consciência e preocupação genuína com os efeitos mentais das experiências traumáticas de guerra procurando combatê-los através de medicamentos específicos e o seu respectivo imoacto psicológico.
Diante dos factos apresentadas nos dois artigos, inferiu-se que o fenómeno psicológico em questão é possessão por espíritos dos mortos, pressupondo-se que os ex-combatentes de guerra (crianças-soldado, jovens e adultos) mataram ou ajudaram directamente a matar pessoas durante a guerra que, por causa disso, deixou os ex-combatentes foram possuído pelos espíritos e ficaram com sua personalidade desintegrada e flutuante, e com identidade e comportamento completamente alterados. Mas também pode se fazer referência ao trauma psicológico dos ex-combatentes (crianças-soldado), como um dos fenómenos psicológicos evidente nos dois artigos.
1. 1. Interpretação da possessão por espíritos na perspectiva da Psicologia Moderna
Não sendo válido, o diagnóstico de possessão por espíritos, na psiquiatria, psicolagia e médicina e não sendo reconhecido pelo DSM – IV e o CID-10, a psicologia moderna interpreta os fenómenos de possessão por espíritos como sendo psicose, definida por Ballone (2005), como distúrbio psíquico grave acompanhado de grave desintegração da personalidade, caracterizado por intensa fuga da realidade acompanhada de agitação, agressividade, impulsividade e distorção dos órgãos dos sentidos – alucinações. A psicologia moderna sustentando-se no facto de muitos dos sintomas apresentados pelos indivíduos possuídos coincidirem com os de um psicótico.
Nas psicoses, a perda dos vínculos com a realidade constitui a característica principal, o que faz com que um indivíduo que sofre deste tipo de distúrbios, esteja com todos os seus pensamentos desorganizados, com incapacidade de formular frases lógicas e compreensíveis; delírios e sentimento de perseguição; alucinações auditivas, visuais, tácteis, olfactórias e de paladar; e agitação e agressão (Marot, 2004).
Alguns dos sintomas que caracterizam os indivíduos possuídos por espíritos também são verificados em psicóticos, como é o caso da agitação e agressividade, delírios, alterações no discurso e, sobretudo, as alucinações. Em relação às alucinações, o psicótico, tal como é um indivíduo possuído por espíritos pode dizer que vê pessoas e pode estar a emitir vozes alegando-se que está a “conversar” (falar) com tais pessoas.
As psicoses podem ter origens nas lesões cerebrais, tumores cerebrais, tóxicos, consumo excessivo de álcool, infecções, traumas psicológicos ou danos emocionais, algumas delas são incuráveis, mas outras são completamente curáveis (Marot, 2004). Neste caso, os traumas psicológicos (danos emocionais) que provocaram sequelas psicológicas nos ex-combatentes, particularmente nas crianças-soldado, devido a intensidade da violência experienciada (Richman;Ratilal e Aly, 1989 citados por Cabral, 2005/2006); a idade das crianças-soldado (CVM/Unicef, 1994 citada por Cabral, 2005/2006); a ruptura afectiva com a família; factores físicos como fome, frio, dor e o tempo de permanência no grupo militar (Boothby, 1993 citado por Cabral, 2005/2006) são considerados a causa principal da psicose. Normalmente, o tratamento das psicoses é feito com base em psicotrópicos acompanhado de psicoterapias.
1.2. A possessão por espíritos na Perspectiva da Cultura Moçambicana
Na cultura moçambicana, a saúde é mais do que um processo corporal de bem-estar normalizado, é um processo de vida definido por relações harmoniosas entre o ser humano e o meio ambiente, o ser humano e os espíritos dos seus antepassados e entre espíritos ancestrais e o meio ambiente, ou seja, os curandeiros estão cientes dos princípios holísticos de saúde (Granjo, 2007). Nesta perspectiva, a possessão por espírito ou madjini como é designado no norte de Moçambique – Nampula, constitui a primeira interpretação de quelquer distúrbio psicológico ou desvio perceptível do comportamento. Nesta região de Moçambique, normalmente, a possessão por espíritos, na zona norte de Moçambique – Nampula, afecta apenas as mulheres.
A existência deste relacionamento permanente entre os humanos vivos e os espíritos dos mortos e a concepção derivada de que é através da manutenção estável e harmoniosa desta relação, associado às suas crenças, valores, tradições e cultura, condiciona e contribui para a definição da “normalidade” e a “anormalidade”, e a determinação do diagnóstico feita através da advinhação.
Muitas vezes, para além de ser interpretado como possessão por espíritos qualquer distúrbio psicológico ou desvio perceptível do comportamento, também é interpretado como sendo um desequilíbrio da relação existente entre os humanos vivos com os antepassados que os levou a se retaliarem contra os vivos como forma de manifestar o seu desagrado; ou ainda como sendo feitiçaria efectuada pelos feiticeiros malignos. Não obstante, conforme refere Cabral (2005/2006), os espíritos podem tanto ajudar como afligir aos vivos, dependendo de os comportamentos dos vivos terem se comportado devidamente, em relação aos espíritos dos mortos.
Definida como uma forma de transe em que as acções comportamentais de uma pessoa são interpretadas como prova de controlo do seu comportamento, por um espírito normalmente exterior a si próprio e que o indivíduo se separa temporariamente da sua essência e identidade resultando em mudanças perceptíveis no comportamento (Honwana, 2002), a possessão por espírito constitui um dos modelos interpretativos centrais de quaisquer fenómenos psicológicos decorrentes na sociedade moçambicana.
1.2.1. Tratamento da possessão por espíritos segundo a Cultura Moçambicana
Na cultura moçambicana, no caso da zona norte de Moçambique – Nampula, o tratamento da possessão por espíritos é feito após um diagnóstico prévio que é feito através da advinhação - processo de diagnóstico social que visa revelar o oculto e expor as causas que estão por detrás das doenças, dos azares e até da sorte que afectam os seres humanos. A advinhação pode revelar também a existência de relações harmoniosas ou não entre o ser humano e o meio ambiente, o ser humano e os espíritos dos seus antepassados e entre espíritos ancestrais e o meio. Daí, dependendo do diagnóstico indicar a possessão por espíritos de pessoas mortas, ou por espíritos que as acções do conflito perturbaram, ou ainda por feitiçaria, pode-se iniciar o tratamento.
Na zona norte de Moçambique - Nampula, por exemplo, o tratamento propriamente dito é feito através da purificação/limpeza que consiste em se dar banho ao “paciente” com água fervida, quente, numa panela de barro grande ainda em fervura, misturada com um remédio pilado; uma moeda de um, dois, cinco ou dez meticais; sangue e penas de galinha sacrificada para tal efeito. Após o banho quente o “paciente/cliente” é lhe cortado o cabelo que é embrulhado na roupa que ele tinha usado durante o banho juntamente com a moeda e entregam-lhe o embrulho para ir deitar numa mata ou ir enterrar. Este acto representa purificação propriamente dita e, simultaneamente, expulsão dos espíritos ou demónios. O ritual, de princípio, pode-se realizar ou na casa do paciente/cliente, ou na casa do curandeiro.
No entanto, as versões do ritual podem variar em pequenos aspectos de região para região dentro da mesma província, dependendo das aspirações de cada curandeiro e dos objectivos de cada ritual. Porém, enquanto se tratar de possessão de qualquer tipo de espíritos, sempre é acompanhado de exorcismo – expulsão de espíritos maus, espíritos de mortos ou demónios. Na região norte de Moçambique - província de Nampula, a possessão por espíritos pode significar a manifestação de vontade de um antepassado-ancestral que sofria de tais manifestações em deixar com uma pessoa mais nova e, dependendo desta pessoa possuída, pode pedir ao curandeiro exorcista, após uma advinhação, para não expulsar os espíritos, mas sim efectuar um casamente entre ela e os espíritos. Na província de Nampula, a manifestação da possessão num indivíduo tem um significado para a família desse indivíduo.
2. Reflexão crítica e recomendações
A África é um espaço que alberga muitas e diferentes formas de religiosidade, algumas delas assentes nos aspectos folclóricos da sociedade, com um poder incontestável de persuasão e de influenciar as deciões dos membros da sociedade. A psicologia moderna, tomada como a única perspectiva possível para interpretar, intervir e resolver os fenómenos psicológicos, incluindo os fenómenos psicológicos africanos, muitas vezes não resolve efectivamente os problemas psicológicos africanos.
Como psicólogos, nas nossas práticas, urge a necessidade de tomar em consideração o carácter holístico da saúde, na medida em que na perspectiva africana a saúde não é vista apenas como o bem-estar físico normalizado, mas sim um bem-estar biopsicossocial e espiritual do indivíduo, visto que para os africanos o ser humano é, antes de mais, essencialmente espiritual e é com base na noção que ele tem da sua espiritualidade que compreende a si, a vida e a morte. Isto é, mente e corpo, saúde e relações sociais, humanos vivos e espíritos dos mortos, na perspectiva dos africanos, não funcionam de forma isolada e independente, sendo antes partes de um todo.
De modo que para encontrar a melhor forma de ajudar o paciente/cliente a descobrir o seu ideal em função da sua experiência de vida e sua aspirações, recomenda-se que é necessário acolher cada paciente/cliente tendo em conta as suas crenças, sua tradição, seus valores, sua religião e sua cultura, visto que é com base nestes aspectos folclóricos que Homem africano interpreta e gere suas doenças. Contudo, portanto, é necessário que o profissional de psicologia saiba conciliar as crenças psicológicas ocidentais (psicologia moderna) e africanas (perspectiva africana dos fenómenos psicolígicos), de forma a proporcionar ao seu paciente/cliente um bem-estar biopsicossocial e espirituaal.
3. Referências Bibliográficas
Ballone, G. J. (2005). Psicoses. Disponível em: http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=289. Acesso em 04 de Abril de 2011.
Cabral, I. (2005/2006). Digerir o passado: rituais de purificação e reintegração social de crianças-soldado no sul de Moçambique, Antropologia Portuguesa, 22/23: 133-156. http://www.uc.pt/en/cia/pública/AP artigos/AP22.23.06 Cabral.pdf, acessado em 01 de Abril de 2011.
Granjo, P. (2007). Limpeza ritual e reintegração pós-guerra em Moçambique, Análise Social, vol. XLII (182): 123-144. http://www.scielo.oces.mcts.pt/pdf/aso/n182/n182a06.pdf, acessado em 01 de Abril de 2011.
Honwana, A. (2002). Espíritos vivos, Tradições Modernas: Possessão de espíritos e reintegração social pós-guerra no Sul de Moçambique. Maputo: Promédia.
Marot, A. (2004). Psicoses. Disponviel em: www.psicosite.com.br/psicoses. Acesso em 04 de Abril de 2011.
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